DO
“CONFISCO” DE BENS FINANCIADOS PELAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS
Recentemente,
com o julgamento do REspe n. 1.418.593/MS, pelo Relator Min. Luís Felipe
Salomão, inúmeras ações de busca e apreensão - baseadas em alienações
fiduciárias de veículos automotores (entre outros bens móveis) - sofreram
grande mudança em seus julgamentos, sendo aplicado o seguinte entendimento:
"Nos contratos firmados na vigência
da Lei 10.931/204, compete ao devedor, no prazo de 5 (cinco) dias após a
execução da liminar na ação de busca e apreensão, pagar a integralidade da
dívida - entendida esta como os valores apresentados e comprovados pelo credor
na inicial – sob pena de consolidação da propriedade do bem móvel objeto da
alienação fiduciária"
Trata-se
de uma mudança considerável e preocupante para todos os devedores nos contratos
de financiamento com garantia fiduciária pois, de acordo com tal entendimento,
em se atrasando uma, duas ou três parcelas (de acordo com a conveniência da
financeira), ajuizada a busca e apreensão o devedor deverá pagar a
integralidade da dívida à vista, ou
seja, antecipando-se todas as parcelas vincendas (não vencidas), sem qualquer
desconto e de imediato para a liberação do bem, situação essa que beira o
“confisco” de bens, conforme iremos demonstrar.
Hipoteticamente
uma pessoa financia um veículo por R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), na
modalidade alienação fiduciária, dando R$ 15.000,00 (quinze mil reais) de
entrada e o saldo de R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais) em 36 (trinta e
seis) vezes.
Pagas
10 (dez) parcelas, atrasam duas parcelas. A instituição financeira, então,
ajuíza uma ação de busca e apreensão, obtém a liminar e apreende o veículo.
Pasmem, a obrigação que será dirimida ao devedor será: “pague todas as parcelas
vencidas à vista, sem desconto, com juros e correção monetária, sob pena de
perdimento do bem”.
Ora,
se já houve o pagamento de dez parcelas, mais a entrada de quinze mil reais,
temos que o valor do contrato supera e muito o valor financiado, e, por razões
de dificuldades, inerentes ao dia-a-dia de qualquer cidadão, em atrasando-se
duas ou três parcelas, ele se vê passível de ter seu bem expropriado, sem
qualquer possibilidade de defesa ou reconstituição da situação anteriormente
acordada com a instituição (pagamento das parcelas em atraso acrescido de
multas e continuidade do contrato de financiamento), gerando um ônus que, além
de injusto, caracteriza, a nosso ver, verdadeiro confisco, o que é
expressamente vedado pelo Código de Defesa do Consumidor.
Utilizamos
a palavra “confisco”, apesar de sua previsão na Constituição Federal para
elencar a impossibilidade dos órgãos públicos de estabelecerem impostos e taxas
que possam levar a perda do bem do contribuinte, exatamente para equiparar a
situação em concreto pois, ao determinar a antecipação das parcelas vincendas,
com a exigibilidade dos valores a vista, com a perda do bem mediante a busca e
apreensão, estamos falando exatamente da perda de um bem do consumidor que
caracteriza excessiva onerosidade ao mesmo, deixando a instituição financeira
em situação tão confortável que, além de apropriar-se dos valores da entrada,
mais as prestações pagas, ainda fica com o bem em si, o que é uma prática
preocupante e totalmente contrária ao princípio da boa-fé contratual.
O
Código Civil prevê:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser
interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
Já o Código de Defesa do Consumidor, por sua vez,
garante que:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...)
V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam
prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que
as tornem excessivamente onerosas
V - exigir do consumidor vantagem manifestamente
excessiva;
Não
bastasse a expressa previsão quanto a vedação de inscrição de obrigações desproporcionais
ou excessivamente rigorosas, ainda determina, não só aos fornecedores, como
também aos operadores do Direito:
Art. 47. As cláusulas contratuais serão
interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.
Código
Civil
Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: (...)
VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou
proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.
Vemos, portanto, que tanto o Código Civil, quanto
o Código de Defesa do Consumidor determinam o respeito ao princípio da boa-fé
contatual entre obrigações e prestações, garantindo, ainda, caso tais
infringências ocorram – justamente por serem hábitos do mercado financeiro que
devem ser coibidos pelo ordenamento jurídico – garantias de declaração de
nulidade as mesmas. Vejamos:
Código de Defesa do Consumidor:
Art. 51. São nulas
de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao
fornecimento de produtos e serviços que: (...)
II - subtraiam ao consumidor a opção de reembolso
da quantia já paga, nos casos previstos neste código; (...)
§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
I - ofende os princípios
fundamentais do sistema jurídico a que pertence;
II - restringe direitos ou
obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar
seu objeto ou equilíbrio contratual;
III - se mostra
excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo
do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.
Art. 52. No fornecimento de produtos ou serviços
que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o
fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente
sobre: (...)
§ 2º É assegurado ao consumidor a liquidação antecipada
do débito, total ou parcialmente, mediante redução proporcional dos juros e demais
acréscimos.
Art. 53. Nos contratos de compra e venda de
móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as
cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do
credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a
retomada do produto alienado.
Grifos nossos
Os
Códigos, por sua natureza de Lei Complementar, possuem tratamento diferenciando
tanto a aplicação quanto a interpretação quanto as Leis Ordinárias, justamente
para evitar interpretações que destoem das normas gerais previstas nos
respectivos diplomas normativos.
Conforme
vimos no caso hipotético apresentado acima, estamos diante de uma perda injusta
e, a nosso ver, ilegal, visto que todas as vantagens pela operação de crédito
são da instituição financeira, ficando o consumidor a mercê da aplicação
equivocada de uma lei ordinária (Lei 10.931, de 02 de agosto de 2004) que
simplesmente nega vigência tanto ao Codigo Civil como o Código de Defesa do
Consumidor, garantindo eficácia somente quanto o interesse das instituições
bancárias.
Nosso
ordenamento jurídico, especialmente os legisladores, trouxeram grandes avanços
com a promulgação dos Codigos acima referidos, não podendo, a essa altura do
campeonato, sofrerem, justamente no Poder Judiciário, uma negativa de vigência
tão grave como a ora apresentada por aquele julgamento, cujas diretrizes estão
sendo pulverizadas em todos os Estados do Brasil.
A
referida Lei Ordinária (Lei 10.931, de 02 de agosto de 2004) estabelece:
Art. 29. A Cédula de Crédito Bancário deve conter
os seguintes requisitos essenciais: (...)
III - a data e o lugar do pagamento da dívida e,
no caso de pagamento parcelado, as datas e os valores de cada prestação, ou os
critérios para essa determinação;
Ou
seja, sendo requisito essencial para a formalização da cédula de crédito
bancário a indicação dos vencimentos e respectivos valores, amortizando-se as
prestações vencidas, com o pagamento dos encargos de mora e juros, não há que
se falar em vencimento antecipado da dívida, previsão essa que é expressamente
vedada pelo artigo 53, do Código de Defesa do Consumidor, pois importa em
vantagem excessivamente onerosa da financeira em detrimento do consumidor, cujo
tratamento deve ser privilegiado e cujas cláusulas contratuais lhe devem ser
interpretadas favoravelmente.
E
nosso entendimento, salvo melhor juízo.
Dourados,
18 de novembro de 2014.
Chrístopher
Pinho Ferro Scapinelli
11.226
OAB/MS
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